Negro não é nada?
NEGRO NÃO É NADA???
TRIBUNA DO ADVOGADO - TÍTULO DA MATÉRIA OFICIAL EM PAPEL: CRIOULO NÃO É
PORRA NENHUMA! , REPORTAGEM VITOR FRAGA , 132 MIL EXEMPLARES . FLS. 09 .
Abril/2013
CRIOULO NÃO É PORRA NENHUMA - FLS. 09 DA TRIBUNA DO ADVOGADO
Fotógrafo vítima de racismo procura OAB/RJ e tem caso revertido
Em 8 de dezembro de 2010, o fotógrafo Izaqueu Alves saiu
de casa para mais um dia de trabalho. Com uma mochila nas costas,
aguardava uma amiga na estação do metrô de Vicente de Carvalho. Essa
atitude foi considerada suspeita por dois policiais, que abordaram
Izaqueu e exigiram que mostrasse seu registro profissional. Como se
recusou, o fotógrafo foi algemado e levado à força para a 27ª Delegacia
de Polícia (27ª DP), acusado de desobediência e desacato. Izaqueu
procurou então a Comissão de Igualdade Racial (CIR) da OAB/RJ, cuja ação
foi determinante para que o fotógrafo passasse da condição de réu à de
vítima – no início do mês passado, os policiais foram requisitados pela
juíza da 19ª Vara Criminal, acusados de abuso de autoridade e injúria
grave.
Gravação 190
Atendente: Novo 190, bom dia!
Izaqueu: Bom dia! Meu nome é Izaqueu Alves. Eu tô sendo
abordado por um policial aqui... Ele quer que eu apresente uma carteira
de fotógrafo pra ele, porque eu tô com uma máquina fotográfica na mão.
Isso procede? (...)
Izaqueu: Ele tá querendo me conduzir na viatura, mandou eu entrar na viatura. Procede isso? Eu tenho que entrar?
Atendente: Só um momento senhor (...)
Izaqueu: A moça tá mandando você aguardar, não vai me prender assim não. Não vai não! Alô!
Policial: Vambora! Vambora!
Policial: Está preso por causa de desobediência.
Izaqueu: Não não! (...)
Atendente: Senhor! Senhor Ezaqueu!
Policial: Agora tu tá preso além de desobediência, por desacato, por desacato!
Policial 2: Preso nos dois.
Izaqueu: Me desculpa!
Policial: Foda-se! Agora você tá preso! Tava sendo tratado
como cidadão, tava sim. Racismo nada! Nessa ... de ninguém.
Policial: Crioulo não é porra nenhuma! (...)
Atendente: Alô!
Izaqueu: Não posso nem ligar pro meu advogado?
Policial 2: Liga da DP.
Atendente: Alô! Alô! Alô! Falta de comunicação, estamos encerrando a sua ligação.
No dia da abordagem, o fotógrafo estranhou a conduta dos
agentes e disse que não era obrigado a mostrar nenhum documento
comprobatório de sua atividade profissional. "A máquina é um objeto, e
vivemos em uma sociedade de consumo. Se eu comprei é meu, não preciso
ter nenhum registro, a não ser que provem que eu roubei", disse Izaqueu.
Diante da arbitrariedade, o fotógrafo ligou para o
telefone de emergência 190, questionando o procedimento policial. O
diálogo que se seguiu foi gravado. O policial, após utilizar termos
chulos para anunciar a prisão, afirmou claramente: "Crioulo não é porra
nenhuma!".
Com receio de entrar na viatura,
Izaqueu resistiu à prisão. Em texto de sua autoria publicado em um blog
na época do fato, chegou a afirmar: "Naquele momento, só pensei nos meus
filhos. Pressentindo o pior, me recusei a entrar naquele navio negreiro
em miniatura". Ele, então, foi algemado e levado para a delegacia. Na
27ª DP, o escrivão determinou que as algemas fossem retiradas e, após
verificar que Izaqueu não tinha ficha criminal, chamou os policiais.
Depois, foi sugerido ao fotógrafo que não apresentasse a
denúncia. Ainda assim, os policiais militares Alexander Brandão e Renato
Alves registraram queixa por desacato e desobediência contra o
fotógrafo, dizendo que a abordagem aconteceu porque ele estaria "por
várias horas naquele local com atitude suspeita, pois se encontrava com
uma mochila nas costas".
Injustamente acusado,
Izaqueu saiu em busca da gravação de sua ligação para o serviço do 190,
já que não havia testemunhas, e procurou a OAB/RJ, com a intenção de
processar o Estado. "A polícia é o braço armado do Estado. Esse é um dos
problemas que o cidadão negro enfrenta no Brasil. Quando um policial
comete um delito, ele não é considerado como parte do Estado", criticou o
fotógrafo.
"O caso é emblemático, um evento para
se lamentar. Buscamos dar a Izaqueu toda a assistência processual. Em
primeiro lugar, diligenciamos em relação à imputação dirigida, já que
não possui antecedentes criminais. Ele foi conduzido algemado à
delegacia, lamentavelmente um fato comum", afirmou o secretário-geral da
CIR, Rogério Gomes.
Em julho de 2011, a comissão
da OAB/RJ enviou ofício à Secretaria de Segurança Pública do Estado, e
em 2012, ao Ministério Público (MP), questionando a condição de réu de
Izaqueu nos crimes de desobediência e desacato, e acrescentando que a
oitiva da gravação da central de atendimento 190 deixa claro o crime de
racismo. Em março deste ano, a juíza da 19ª Vara Criminal fez a
requisição dos policiais, agora réus dos crimes de abuso de autoridade e
injúria qualificada.
"A comissão pediu apuração
dos crimes de abuso de autoridade, de tortura, por conta do uso forçado
das algemas, e de racismo. Já o MP entendeu que não houve racismo e sim,
injúria. Reiteramos a denúncia de racismo, que consideramos evidente",
sublinhou Rogerio. "É importante dar publicidade a esse caso, para que
situações assim não se repitam. A atuação arbitrária dos agentes
policiais é óbvia. Posteriormente ele poderá, no campo da
responsabilidade civil, de forma autônoma, requerer uma reparação pelos
danos sofridos".
Perguntado se considerava que sua
reação interferiu de alguma forma no desfecho do caso, Izaqueu foi
enfático. "[Se não fosse a minha reação] Acho que eu nem estaria vivo. A
realidade da maioria dos jovens negros nas periferias é que eles nem
vivem para contar sua história. Enquanto o índice de mortes entre jovens
brancos vem diminuindo, entre os jovens negros aumenta
sistematicamente, um verdadeiro genocídio. Tenho um filho de 13 anos,
não posso baixar a cabeça para os arbítrios. Minha luta, a do Rogério e
de tantos outros, é para que seja dado um fim a isso, e que seja real. O
racismo é crime inafiançável, mas ninguém foi preso no Brasil até hoje
por isso. Como pode, em um país tão racista como o nosso? O Brasil tem
preconceito de ter preconceito".
Versão online da edição de abril da Tribuna do Advogado.
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