Da Congada a Senzala
"A
Congada no Brasil começou assim: quando os negros viviam
na senzala e o fidalgo senhor queria saber o que é que eles
faziam; então, ajuntaram-se os padres para colher os segredos
dos negros. O que o negro fazia durante o dia, o senhor estava vendo,
estava ouvindo; o que ele fazia fora de hora, à noite na
senzala, o senhor não sabia. Então o padre falava
para o negro:
Oh! Você tem que contar os seus pecados, contar tudo que você
sente!
Então o negro ia dizer que ele matou uma leitoa, que ele
fez a reza dele lá da África. Aí o padre falava
que era pecado. Então o senhor descobria o segredo do negro
porque o padre contava. Contava que eles tinham uma festa de São
Benedito e Nossa Senhora do Rosário. Mas eles faziam sozinhos
à noite, nas matas."
Sr. Cândido Geraldo Ananias, "Tio Candinho", em
depoimento gravado no segundo semestre de 1993

Ao contrário da maioria das
festas populares e religiosas fundamentadas por passagens históricas
ou mesmo por lendas que compõem o imaginário da civilização
ocidental e que trazem em sua simbologia a síntese do espírito
cristão, a Congada se constitui em sua essência pela
espiritualidade advinda de religiões africanas, como os Candomblés
e a Umbanda.
Surgida no Brasil com a vinda de povos africanos de origem Banto,
oriundos das regiões do Congo, Moçambique, Mina, Angola,
entre outras, aqui tornados escravos, a Congada é uma manifestação
característica da cultura afro-brasileira que encontrou no
sincretismo religioso um meio de resistir ao domínio e à
imposição etnocêntrica dos valores culturais
e religiosos do homem branco. Assim, com expressões como
a Congada, os povos negros trazidos para o Brasil, e aqui barbaramente
subjugados, sustentaram sua fé com a manutenção
de seus rituais religiosos.
A forma de preservação de sua identidade étnica
e de seus valores culturais foi a assimilação e a
incorporação de elementos da religiosidade católica,
num processo de reelaboração simbólico-religiosa
em que orixás e santos encontraram um espaço de coexistência
dentro do terreiro. Mas essa não foi uma experiência
histórica pacífica, pois até hoje os ritos
afro-brasileiros esbarram em preconceitos quando buscam ganhar as
ruas e outros espaços públicos, sobretudo se tentam
adentrar à liturgia da Igreja Católica tradicional.
Com fortes variações regionais, as Congadas podem
ser vistas em quase todo o território brasileiro, sendo muito
expressivas no interior dos estados de Minas Gerais e de São
Paulo. Em Minas, principalmente, percebe-se um rico patrimônio
da cultura afro-brasileira, devido ao grande contingente de negros
trazidos como escravos durante o período setecentista, quando
se assistiu à exploração das minas de ouro
e pedras preciosas pela Coroa de Portugal. Mas mesmo dentro do estado
mineiro, podemos identificar diferenças entre as Congadas
das cidades do Ciclo do Ouro e do Diamante e as do Triângulo
Mineiro. Essas diferenças são resultantes da maior
ou menor interferência dos componentes simbólicos católicos
nos rituais africanos que, não obstante, relutaram por sobreviver.
Nas cidades do Ciclo do Ouro e do Diamante, a Igreja exerceu um
papel fundamental no processo abolicionista, servindo como instrumento
de adequação dos ex-escravos a uma nova ordem socioeconômica,
por meio de irmandades, com finalidades aparentemente assistencialistas,
que inseriam os negros na sociedade, em sua nova condição
de libertos. Essas irmandades, criadas no estado mineiro a partir
do século XVIII para melhor controlar a produção
das minas e, principalmente, impedir que houvesse desvio de ouro
e pedras preciosas por parte dos negros, desempenharam, quando da
abolição da escravatura, um papel de equilíbrio
do sistema político-social. Isso devido ao fato de que a
população negra, força de trabalho inadequada
ao novo sistema econômico imposto pela Inglaterra, se tornaria
um contigente de desempregados, destituídos de sua nação,
impedidos de exercer sua cultura, seus valores morais e religiosos,
e sem direitos garantidos nesse novo panorama social. Um contingente
de homens insatisfeitos que não mais obedeceriam aos açoites,
mas que ainda precisavam ser controlados.
Por haver a Igreja exercido em Minas esse papel de disciplinadora
e de intermediadora da comunidade negra com a sociedade, percebemos,
hoje, uma influência muito maior do catolicismo na Congada
das cidades mais antigas, como Serro e Ouro Preto, do que nas da
região do Triângulo Mineiro, principalmente em Uberaba
e Uberlândia, de formação mais tardia e assentadas
em outras bases econômicas, políticas e sociais. Nessas
cidades, a presença dos símbolos da Umbanda é
claramente visível na festa, pois a comunidade de congadeiros,
menos reprimida pelas instituições católicas,
privilegia a face africana do sincretismo, mais consciente da necessidade
de resgate e da preservação de suas origens culturais
e religiosas, o que só tem sido possível mediante
a perpetuação dos cultos e à memória
de seus antepassados.
Outros fatores também contribuíram para que houvesse
variações regionais de uma mesma expressão
da cultura afro-brasileira. Ao percorrer a história do negro
no Brasil, desde a sua procedência africana até a descrição
da sua aculturação no nosso território, autores
como João José Reis e Eduardo Silva em Negociação
e conflito. A resistência negra no Brasil escravista constataram
grandes diferenciações no processo de constituição
e resistência da cultura negra no país. Isso se deveu,
acima de tudo, à vastidão do território africano,
que era habitado por um grande número de etnias distintas
entre si e que para cá se viram seqüestradas e distribuídas
num território também vasto, mas de maior unidade
política, ainda que guardasse significativas peculiaridades
regionais. Acrescente-se a isso o fato revelador de que essas imigrações
forçadas ocorreram ao longo de mais de 300 anos, aqui aportando
em momentos distintos da nossa história, encontrando sociedades
diferenciadas pelo tempo e, portanto, também propiciadoras
de diferentes formas de aculturação tensa. Um bom
exemplo é a organização dos negros na Bahia
quando comparada com a ocorrida em outros estados. Ali, a cultura
afro-brasileira adquiriu uma configuração historicamente
marcada por uma maior atuação política. Isso
devido, entre outros fatores, à heterogeneidade das etnias
negras, ao grande número desta população e
à decadência da província baiana que, após
a descoberta das minas, perdeu seu posto de centro político,
administrativo e econômico da colônia com a transferência
da capital para a cidade do Rio de Janeiro.
Quanto ao aspecto religioso da Congada, se voltarmos a atenção
para a participação da Igreja Católica na constituição
da cultura negra do Brasil, veremos que mesmo aquelas características
cristãs aparentemente puras, enraizadas nos cultos e folguedos
de origem afro, tomaram nova forma. Assim, passaram a servir de
veículo para a expressão da fé e da religiosidade
de origem africana. Havendo, também, nesse processo, a participação
da cultura indígena, como se pode, por exemplo, observar
mediante a presença dos "caboclos", entidades ameríndias
"recebidas" nos terreiros de Umbanda. Percebemos, então,
um sincretismo religioso complexo, que caracteriza a Congada e tantas
outras manifestações afro-brasileiras, não
como uma simples assimilação da cultura do outro,
imposta como forma de domínio, mas sim, como resistência
política, por meio da qual é preservado um arcabouço
cultural ao mesmo tempo em que se constrói outro, uma nova
composição de símbolos e representações,
a configuração de uma nova identidade.
Ao exercer um papel de polícia simbólica e braço
forte da ordem colonial, claramente expresso na fala de Tio Candinho,
a Igreja Católica teve uma participação fundamental
nesse processo. Para agregar o negro, que era considerado de espiritualidade
inferior, ao seu corpo de fiéis e, dessa maneira, neutralizar
o impacto que seus rituais de adoração aos orixás
poderiam causar sobre a tradição cristã, essa
instituição agiu com força e violência
na sobreposição etnocêntrica de sua cultura
em relação à africana. Usou da grande importância
que os povos africanos dão à religiosidade, fazendo
com que seus cultos nos fossem apresentados como folclore, depreciados
em seus valores e significados. Estes, ainda hoje, permanecem, em
grande medida, desconhecidos e ignorados por uma sociedade que,
ao contrário do que nos diz o mito da democracia racial e
cultural, encontra-se num lento processo de aprendizagem de convívio
com as suas diferenças. Porém, apesar de tanta truculência
e de tanto banzo, eis no Brasil a herança dos povos africanos
que, com muito sacrifício e sofrimento, mas usando de muita
astúcia e de brava resistência expressa na forma de
revoltas, de fugas e na formação de quilombos, souberam
preservar sua cultura. Dessa maneira, ajudaram a formar, muito além
da cor da pele, esse país que, mundo afora, se tornou conhecido
por sua riqueza cultural.
Foram a questões como estas, aqui apenas esboçadas,
que nos ativemos quando da produção desse ensaio fotográfico
sobre a "festa dos homens de cor", buscando assim registrar,
além de sua beleza estética, a sua incomparável
riqueza histórica. Realizamos então um trabalho que,
embora não se pretenda antropológico, etnográfico
ou definido por qualquer outro padrão científico ou
mesmo estético, seja uma pequena, mas sincera, contribuição
para o resgate e a preservação da nossa história.
Essa bela festa que perpetua-se apenas pela força da tradição
é um exemplo de tolerância e resistência cultural
que ajuda a definir e a compor a singularidade de nosso país.
Por isso, enxergarmos a Congada, é fundamental neste momento
em que a imposição de uma política econômica
globalizada ameaça desintegrar as culturas regionais, fundindo-as
no amálgama da espetacularização, roubando-lhes,
assim, a sua autenticidade.

Fonte: www.photosynt.net
Nenhum comentário:
Postar um comentário