segunda-feira, 6 de maio de 2013

Da Congada a Senzala


 
"A Congada no Brasil começou assim: quando os negros viviam na senzala e o fidalgo senhor queria saber o que é que eles faziam; então, ajuntaram-se os padres para colher os segredos dos negros. O que o negro fazia durante o dia, o senhor estava vendo, estava ouvindo; o que ele fazia fora de hora, à noite na senzala, o senhor não sabia. Então o padre falava para o negro:
Oh! Você tem que contar os seus pecados, contar tudo que você sente!
Então o negro ia dizer que ele matou uma leitoa, que ele fez a reza dele lá da África. Aí o padre falava que era pecado. Então o senhor descobria o segredo do negro porque o padre contava. Contava que eles tinham uma festa de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário. Mas eles faziam sozinhos à noite, nas matas."
Sr. Cândido Geraldo Ananias, "Tio Candinho", em depoimento gravado no segundo semestre de 1993



Ao contrário da maioria das festas populares e religiosas fundamentadas por passagens históricas ou mesmo por lendas que compõem o imaginário da civilização ocidental e que trazem em sua simbologia a síntese do espírito cristão, a Congada se constitui em sua essência pela espiritualidade advinda de religiões africanas, como os Candomblés e a Umbanda.


Surgida no Brasil com a vinda de povos africanos de origem Banto, oriundos das regiões do Congo, Moçambique, Mina, Angola, entre outras, aqui tornados escravos, a Congada é uma manifestação característica da cultura afro-brasileira que encontrou no sincretismo religioso um meio de resistir ao domínio e à imposição etnocêntrica dos valores culturais e religiosos do homem branco. Assim, com expressões como a Congada, os povos negros trazidos para o Brasil, e aqui barbaramente subjugados, sustentaram sua fé com a manutenção de seus rituais religiosos. 

A forma de preservação de sua identidade étnica e de seus valores culturais foi a assimilação e a incorporação de elementos da religiosidade católica, num processo de reelaboração simbólico-religiosa em que orixás e santos encontraram um espaço de coexistência dentro do terreiro. Mas essa não foi uma experiência histórica pacífica, pois até hoje os ritos afro-brasileiros esbarram em preconceitos quando buscam ganhar as ruas e outros espaços públicos, sobretudo se tentam adentrar à liturgia da Igreja Católica tradicional.

Com fortes variações regionais, as Congadas podem ser vistas em quase todo o território brasileiro, sendo muito expressivas no interior dos estados de Minas Gerais e de São Paulo. Em Minas, principalmente, percebe-se um rico patrimônio da cultura afro-brasileira, devido ao grande contingente de negros trazidos como escravos durante o período setecentista, quando se assistiu à exploração das minas de ouro e pedras preciosas pela Coroa de Portugal. Mas mesmo dentro do estado mineiro, podemos identificar diferenças entre as Congadas das cidades do Ciclo do Ouro e do Diamante e as do Triângulo Mineiro. Essas diferenças são resultantes da maior ou menor interferência dos componentes simbólicos católicos nos rituais africanos que, não obstante, relutaram por sobreviver. 

Nas cidades do Ciclo do Ouro e do Diamante, a Igreja exerceu um papel fundamental no processo abolicionista, servindo como instrumento de adequação dos ex-escravos a uma nova ordem socioeconômica, por meio de irmandades, com finalidades aparentemente assistencialistas, que inseriam os negros na sociedade, em sua nova condição de libertos. Essas irmandades, criadas no estado mineiro a partir do século XVIII para melhor controlar a produção das minas e, principalmente, impedir que houvesse desvio de ouro e pedras preciosas por parte dos negros, desempenharam, quando da abolição da escravatura, um papel de equilíbrio do sistema político-social. Isso devido ao fato de que a população negra, força de trabalho inadequada ao novo sistema econômico imposto pela Inglaterra, se tornaria um contigente de desempregados, destituídos de sua nação, impedidos de exercer sua cultura, seus valores morais e religiosos, e sem direitos garantidos nesse novo panorama social. Um contingente de homens insatisfeitos que não mais obedeceriam aos açoites, mas que ainda precisavam ser controlados.

Por haver a Igreja exercido em Minas esse papel de disciplinadora e de intermediadora da comunidade negra com a sociedade, percebemos, hoje, uma influência muito maior do catolicismo na Congada das cidades mais antigas, como Serro e Ouro Preto, do que nas da região do Triângulo Mineiro, principalmente em Uberaba e Uberlândia, de formação mais tardia e assentadas em outras bases econômicas, políticas e sociais. Nessas cidades, a presença dos símbolos da Umbanda é claramente visível na festa, pois a comunidade de congadeiros, menos reprimida pelas instituições católicas, privilegia a face africana do sincretismo, mais consciente da necessidade de resgate e da preservação de suas origens culturais e religiosas, o que só tem sido possível mediante a perpetuação dos cultos e à memória de seus antepassados.

Outros fatores também contribuíram para que houvesse variações regionais de uma mesma expressão da cultura afro-brasileira. Ao percorrer a história do negro no Brasil, desde a sua procedência africana até a descrição da sua aculturação no nosso território, autores como João José Reis e Eduardo Silva em Negociação e conflito. A resistência negra no Brasil escravista constataram grandes diferenciações no processo de constituição e resistência da cultura negra no país. Isso se deveu, acima de tudo, à vastidão do território africano, que era habitado por um grande número de etnias distintas entre si e que para cá se viram seqüestradas e distribuídas num território também vasto, mas de maior unidade política, ainda que guardasse significativas peculiaridades regionais. Acrescente-se a isso o fato revelador de que essas imigrações forçadas ocorreram ao longo de mais de 300 anos, aqui aportando em momentos distintos da nossa história, encontrando sociedades diferenciadas pelo tempo e, portanto, também propiciadoras de diferentes formas de aculturação tensa. Um bom exemplo é a organização dos negros na Bahia quando comparada com a ocorrida em outros estados. Ali, a cultura afro-brasileira adquiriu uma configuração historicamente marcada por uma maior atuação política. Isso devido, entre outros fatores, à heterogeneidade das etnias negras, ao grande número desta população e à decadência da província baiana que, após a descoberta das minas, perdeu seu posto de centro político, administrativo e econômico da colônia com a transferência da capital para a cidade do Rio de Janeiro.

Quanto ao aspecto religioso da Congada, se voltarmos a atenção para a participação da Igreja Católica na constituição da cultura negra do Brasil, veremos que mesmo aquelas características cristãs aparentemente puras, enraizadas nos cultos e folguedos de origem afro, tomaram nova forma. Assim, passaram a servir de veículo para a expressão da fé e da religiosidade de origem africana. Havendo, também, nesse processo, a participação da cultura indígena, como se pode, por exemplo, observar mediante a presença dos "caboclos", entidades ameríndias "recebidas" nos terreiros de Umbanda. Percebemos, então, um sincretismo religioso complexo, que caracteriza a Congada e tantas outras manifestações afro-brasileiras, não como uma simples assimilação da cultura do outro, imposta como forma de domínio, mas sim, como resistência política, por meio da qual é preservado um arcabouço cultural ao mesmo tempo em que se constrói outro, uma nova composição de símbolos e representações, a configuração de uma nova identidade. 

Ao exercer um papel de polícia simbólica e braço forte da ordem colonial, claramente expresso na fala de Tio Candinho, a Igreja Católica teve uma participação fundamental nesse processo. Para agregar o negro, que era considerado de espiritualidade inferior, ao seu corpo de fiéis e, dessa maneira, neutralizar o impacto que seus rituais de adoração aos orixás poderiam causar sobre a tradição cristã, essa instituição agiu com força e violência na sobreposição etnocêntrica de sua cultura em relação à africana. Usou da grande importância que os povos africanos dão à religiosidade, fazendo com que seus cultos nos fossem apresentados como folclore, depreciados em seus valores e significados. Estes, ainda hoje, permanecem, em grande medida, desconhecidos e ignorados por uma sociedade que, ao contrário do que nos diz o mito da democracia racial e cultural, encontra-se num lento processo de aprendizagem de convívio com as suas diferenças. Porém, apesar de tanta truculência e de tanto banzo, eis no Brasil a herança dos povos africanos que, com muito sacrifício e sofrimento, mas usando de muita astúcia e de brava resistência expressa na forma de revoltas, de fugas e na formação de quilombos, souberam preservar sua cultura. Dessa maneira, ajudaram a formar, muito além da cor da pele, esse país que, mundo afora, se tornou conhecido por sua riqueza cultural.

Foram a questões como estas, aqui apenas esboçadas, que nos ativemos quando da produção desse ensaio fotográfico sobre a "festa dos homens de cor", buscando assim registrar, além de sua beleza estética, a sua incomparável riqueza histórica. Realizamos então um trabalho que, embora não se pretenda antropológico, etnográfico ou definido por qualquer outro padrão científico ou mesmo estético, seja uma pequena, mas sincera, contribuição para o resgate e a preservação da nossa história. Essa bela festa que perpetua-se apenas pela força da tradição é um exemplo de tolerância e resistência cultural que ajuda a definir e a compor a singularidade de nosso país. Por isso, enxergarmos a Congada, é fundamental neste momento em que a imposição de uma política econômica globalizada ameaça desintegrar as culturas regionais, fundindo-as no amálgama da espetacularização, roubando-lhes, assim, a sua autenticidade. 
 


Fonte: www.photosynt.net

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