Por Jarid Arraes
A questão da miscigenação racial no Brasil costuma ser muito
simplificada e romantizada. Não é raro ouvirmos que o Brasil é um país
mestiço e plural e que, consequentemente, todos os seus habitantes
tiveram sua etnia inevitavelmente misturada em algum ponto de sua
ancestralidade. Mas sob o axioma de um país miscigenado se esconde uma
realidade violenta e racista: a generalização da branquitude em um país
predominantemente negro.
Se todos os brasileiros são miscigenados e possuem sangue negro e
indígena em suas veias, por que tantas pessoas resistem em reconhecer a
própria ascendência? Acontece que a identificação social da pessoa negra
no Brasil acontece diretamente devido ao tom da pele. O entendimento
das pessoas a respeito da negritude é muitas vezes distorcido: mesmo que
a família direta ou os pais de um indivíduo sejam negros, o que pesa
para que essa pessoa seja reconhecida como negra é a cor da sua pele.
Mesmo o tom escuro não é garantia de que alguém será visto como negro;
basta lembrar de quantas vezes são adotados eufemismos como "moreno"
para se referir a pessoas com a cor da pele escura, como se a palavra
pudesse de algum modo reduzir a carga negativa que o termo "negro"
parece ter.
Embora a sociedade nem sempre valide a negritude alheia, as pessoas
costumam reconhecer essa mesma negritude em traços e características
físicas, que são constantemente transformados em justificativas para o
racismo e a violência. O nariz largo, os lábios grossos ou o cabelo
crespo, popularmente conhecido como "cabelo ruim", são alvos de
degradação e repúdio. É interessante lembrar que a África é um vasto
continente com uma grande variedade de etnias, das quais não são todas
que se encaixam no molde conhecido de "traços negros". Ainda assim, são
essas as características interpretadas como negras e que acabam por
fermentar o racismo em suas mais diversas formas.
Mesmo com tantas histórias de violência racista, muitas pessoas ainda
se sentem inseguras quando questionadas sobre sua negritude. Na última
semana, foi aberto um formulário de pesquisa voltado para pessoas
miscigenadas e as respostas obtidas foram bastante similares entre si.
Algumas pessoas dizem que não se sentem no direito de se afirmar como
negras devido ao tom não tão escuro da sua pele. Muitas delas são
descendentes diretas de negros, ou contam com parentes próximos negros,
mas a afirmação racial simplesmente não acontece. Por um lado, essa é
uma demonstração de respeito às pessoas negras de pele
inquestionavelmente escura, que sofrem o racismo diário impassível de
debates ou especulações – o racismo contra a pele escura e contra a
aparência. Por outro lado, uma discussão séria e sensível se faz
necessária: por que tanta gente afrodescendente não reconhece a própria
negritude e não consegue afirmá-la de forma política e subjetiva?
Para os brasileiros, é melhor ser branco sempre que for possível. Se a
pele não é escura o suficiente, ou se um dos pais é loiro de olhos
azuis, então a pessoa é considerada branca, em uma tentativa incansável
de clarear os descendentes, a família e a nação. Da mistura de raças,
nasce o branco por consideração e, com isso, morrem a cultura, a
religião e a identidade afrodescendente. A negritude e a cultura
africana, com seus símbolos e tradições, se tornam cada vez mais algo do
passado, de uma ancestralidade que é, na maioria esmagadora das vezes,
totalmente desconhecida.
Mas os tópicos para debate não param por aí, pois não é o
reconhecimento da identidade negra que fará uma pessoa ser negra. Mesmo
que os seus pais ou os seus avós sejam negros, uma pessoa de pele branca
e cabelo claro dificilmente sofre o racismo destinado às pessoas
negras. É uma questão de bom senso: não há empatia em tomar uma
afirmação política contra uma discriminação da qual você não é vítima.
Resgatar suas raízes familiares, conhecê-las, celebrá-las e promovê-las é
algo desejável e inspirador, mas é importante tomar cuidado para não
banalizar a afirmação política negra e a sua luta. Há pessoas brancas,
essas sem nenhum vínculo familiar negro, que são repletas de má fé e
dizem que também são negras por causa da miscigenação brasileira. Mas
esse argumento é uma farsa: em nosso país, negro é quem é reconhecido
pelos outros como negro e, consequentemente, sofre racismo e
discriminação social.
O racismo é um problema enraizado desde a formação do Brasil. Há
séculos nosso país vem lutando para destruir as heranças culturais
africanas e impedir a afirmação política negra de autorreconhecimento
racial. Fazemos parte de um país que não tanto tempo atrás tinha
abertamente uma política de branqueamento racial, incentivando a entrada
de imigrantes brancos para clarear a cor do Brasil. A cultura
brasileira deseja apagar o negro da sua história, sob a máscara
pretenciosa da miscigenação. Mas a miscigenação também pode ser uma arma
de luta e empoderamento: basta nos compreendermos como
afrodescendentes, sem perdermos de vista o racismo que sofremos. Quando a
face racista da sociedade se revela, não há quase-brancos, quase-negros
ou morenos, mas sim pessoas nas quais a negritude foi reconhecida.
Por fim, esse texto sozinho jamais seria capaz de abordar todas as
nuances e complexidade do tema. É preciso desbravar a miscigenação
brasileira e promover a conscientização sobre o assunto. Que essa seja
somente a nossa largada para a reflexão e a realização de novos debates e
projetos.
Jarid Arraes é educadora sexual, especialista em sex toys, escreve no
Mulher Dialética e no Guia Erógeno.
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